quinta-feira, 3 de setembro de 2020

Redimindo a cultura





Quando, porém, reconheceram que ele era judeu, todos, a uma voz, gritaram durante quase duas horas: — Grande é a Diana dos efésios! O escrivão da cidade, tendo apaziguado o povo, disse: — Senhores efésios, quem não sabe que a cidade de Éfeso é a guardiã do templo da grande Diana e da imagem que caiu do céu? Ora, não podendo isto ser contestado, convém que vocês se mantenham calmos e não façam nada de forma precipitada; porque estes homens que vocês trouxeram para cá não profanaram o templo, nem blasfemam contra a nossa deusa. Atos 19:34-37

Esta é uma passagem interessante do livro de Atos, que na verdade, teria me passado despercebida, não fosse uma boa exposição ouvida ontem por alguém a quem estimo muito, o professor e pastor Rev. Mario Fukue. 

O que estava acontecendo? Era um evangelismo em praça pública, as pessoas iam e vinham, alguns paravam para ouvir, mas quanto tempo ficariam ali? Hora que se tornasse cansativo, bastava seguir o caminho. Os pregadores não tinham tempo de tratar de assuntos secundários. 

O que estavam pregando?  Paulo e seus companheiros anunciavam que não há outro caminho para a salvação, senão o revelado em Cristo, e assim pregava, batizava e fazia discípulos entre os gregos. 

Aonde pregavam? Éfeso era uma cidade famosa por ter um templo dedicado a Diana (ou Ártemis, para os romanos) era um templo famoso e a economia da cidade vinha desta fonte de adoração. 

Como se formou a confusão? Um ourives, chamado Demétrio, ficou com medo de perder sua fonte de renda, juntou amigos e começou uma confusão, que logo atraiu uma multidão. 



Pelo testemunho que é dado sobre estes homens, fosse hoje, muitos grupos os acusariam de muitos “ismos”, ecumenismo, liberalismo, evangelho falso, etc... Por que? O que o próprio texto nos mostra é que o escrivão da cidade, que não creu no discurso deles os defendeu, e o fez, porque atestou que o discurso não desmoralizava a deusa adorada na cidade. Eles não saíam chutando macumba, nem quebrando uma imagem de gesso com martelo, nem fazendo campanha de cercar o templo em um “ato profético”, não ficavam jogando óleo ungido nos umbrais do templo de Diana, nem mesmo foram até a banquinha de Demétrio para “quebrar a maldição” daquelas imagens que vendia. 
Na verdade, nem eles, nem os novos convertidos ali fizeram coisa alguma contra a religião da cidade. 



Então quer dizer que adorar uma deusa não tinha nada de mal? 

A questão na verdade é: Onde ponho a minha confiança? Eles não precisavam tomar ali uma atitude contra a religião da cidade, porque tinham plena confiança de que o Espírito Santo age pela proclamação da Palavra. Com pessoas indo e vindo, não havia tempo para falar de todos os erros do mundo, por isto, a única mensagem que levavam era Cristo crucificado (1 Cor 1:23). Os seguidores do Evangelho tinham plena confiança no agir de Deus, por isso não tomavam o agir em suas próprias mãos. 

O escrivão da cidade tinha esta mesma confiança em Diana: ela é tão grande, que todos sabem quem ela é, e não seria um grupo de estrangeiros que a derrubaria, então, se eles não fazem mal ao templo da deusa, nem desrespeitam a lei, não há do que acusá-los. 
E assim a vida seguiu, quem queria seguir Diana, seguia, quem decidiu seguir Cristo, foi discipulado por Paulo e seus companheiros em particular. 
Este aparente “empate” foi resolvido por Deus na escola do tempo. Onde estão os adoradores da grande Diana dos gregos hoje? Ou da tão poderosa Ártemis dos romanos? Não se encontram mais em parte alguma, mas os seguidores de Cristo continuam e milênios depois, povos que nunca ouviram aqueles homens continuam a crer e ser discipulados no mesmo ensino que aqueles gregos. 

Isto lembra bem o dito em Zc.4.6: Não por força, nem por violência, mas pelo meu Espírito”
Nisto vale a reflexão: não que denunciar o erro não deva ser feito, mas, quando o tempo é limitado, vale mais a pena ensinar todas as formas possíveis de se estragar o bolo, ou passar a receita? No mais, nossos “cruzados da internet” nossos “quebradores de maldição” tem colocado a confiança aonde? 

Na próxima vez que ouvir falar de alguém querendo quebrar uma imagem, “cristianizar as leis”, “redimir a cultura”, veja além da loucura, nossa humanidade querendo empurrar o arrependimento que não depende de nós.

terça-feira, 1 de setembro de 2020

“Eu não creria no Evangelho, se a isso não me levasse à autoridade da Igreja católica.” (Santo Agostinho)


“Eu não creria no Evangelho, se a isso não me levasse à autoridade da Igreja católica.” (Santo Agostinho) 



Está ai uma frase que lemos com frequência, muitas vezes em discussões sobre a fé de modo acalorado, como numa tentativa de usar um argumento final: vou citar uma pessoa famosa para comprovar a minha tese! 

No final, fica-se apenas uma frase de efeito, regurgitada, sem reflexão, sem cuidado. 

Mas o que Santo Agostinho quis dizer com esta frase? 

Esta citação está dentro de um escrito contra os Maniqueus. Para a memória, o maniqueísmo é uma seita gnóstica (e como toda seita gnóstica, pregava um conflito entre o espírito que é bom, feito por um deus bom, contra a carne, que é má e feita por um deus mau... a velha luta de bem contra o mal até o fim dos tempos), mas com um toque próprio: Havia um evangelho de Maniqueu. Eles tinham um evangelho próprio, escrito por um apóstolo deles, o próprio Maniqueu. 

Santo Agostinho aborda então esta questão de vários modos diferentes, até que no capítulo 5, seu argumento segue a seguinte linha: 

O SEU evangelho atesta que Maniqueu é apóstolo, os MEUS evangelhos não reconhecem isso. Como vocês querem que eu creia no testemunho que está num evangelho que eu nem creio ser autêntico? 

Em outras palavras, o argumento de autoridade que os Maniqueístas usavam não tinha valor para Santo Agostinho, simplesmente porque ele não reconhece a autoridade daquela fonte. 

A partir deste ponto então, passa-se à segunda parte deste capítulo: como os maniqueístas tentavam provar a validade de seu evangelho pelas fontes reconhecidas pelos cristãos, a saber, os quatro evangelhos autênticos. 

Eis o problema! Se eu tento provar pelas escrituras um argumento, isso significa que a reconheço como válida. 

Então, como posso dizer que as escrituras são válidas para provar o que me é conveniente, mas não para condenar o que não me convém? 

Se os maniqueístas queriam provar a autoridade de seu mestre, não era para o evangelho que eles deveriam olhar, mas para fora dele. 

Agostinho segue o discurso afirmando que se, por um acaso, os maniqueístas pudessem provar seu ponto pelas escrituras, então, ele não poderia mais crer nas escrituras, porque ela não seria divina, mas um texto parcial, nem poderia crer na igreja, porque ela o direcionou a crer no evangelho, nem poderia crer nos próprios maniqueístas, pois eles tiram sua autoridade de um texto falho. 

Por outro lado, se ele crê nas escrituras, então, ele vê ali o nome de todos os apóstolos, e vê que todos eles receberam o Espírito Santo, e vê a formação da igreja, e, portanto, este é o evangelho que deve permanecer. 

De fato, ele não creria no evangelho se ele não fosse movido na autoridade da igreja (esta tradução é melhor). 

Disto vemos como Santo Agostinho defendeu o evangelho de modo perspicaz. O Evangelho é para os cristãos, e ele não obriga em momento algum a conversão dos maniqueístas. Eles podem crer no que quiserem. Não é um argumento para se jogar na mesa, do tipo: convertam-se hereges! Deus Vult! Não, Agostinho falava dele mesmo... ele crê na igreja e nas escrituras como uma coisa só, inseparável até o fim dos tempos. 

Esta citação famosa tem sido usada curiosamente hoje na boca de alguns católicos romanos como um argumento de autoridade para que, justamente aqueles que não reconhecem a autoridade do Vaticano, se submetam, mas não seria justamente o oposto? Não foi justamente o objetivo de Santo Agostinho falar que um argumento de autoridade somente é válido para quem o reconhece como válido? 

Lembremos, portanto, que Agostinho usa este argumento para quem tenta comprovar a autoridade de uma fonte extra-bíblica, reinterpretanto a própria bíblia, no caso um evangelho apócrifo, mas poderia ser um outro livro sagrado, o que um pastor X disse num programa de tv, uma revelação especial, uma profecia de uma fonte qualquer, e até mesmo, um livro, um comentário bíblico. Ou a escritura, que testifica da igreja é verdadeira, ou todo aquele que tenta se usar do evangelho para validar sua crítica ao próprio evangelho está usando uma fonte que sabe ser uma fraude, e portanto, este alguém não é digno de confiança.

Discussões com cristãos que reconhecem o mesmo evangelho, mas divergem em doutrina sequer é abordado neste escrito, e o próprio Santo Agostinho usa uma abordagem diferente. Todo cristão que crê no evangelho, também crê na autoridade da igreja. A questão toda é: o que é a igreja?

Cremos no Espírito Santo, na santa Igreja católica, a comunhão dos santos, na remissão dos pecados, na ressurreição da carne e na Vida Eterna. Amém.