sexta-feira, 6 de julho de 2018

Piedade X Pietismo: A verdadeira devoção


É estranho que o que um dia já foi um termo nobre, tenha se tornado um insulto. Os Americanos, por exemplo tem uma ideia bem definida do termo “pious”, ou, piedoso em nossa língua: uma pessoa com uma visão de cristianismo carregada e cheia de auto justificação, semelhante ao termo "beato" quando usado pejorativamente em nossa língua. Quando uma pessoa se refere a alguém como piedoso, normalmente está dizendo de alguém que não tenha compreendido o conceito da liberdade cristã, a liberdade que vem quando as amarras da lei caiem dos nossos pulsos por causa as boas novas de salvação em Cristo por graça e fé. Enfim, certa confusão entre o que é piedade e o que pietismo. 

Mas o que é piedade? 

Piedade, ou ser piedoso, pode ser pensado de duas formas. Em primeiro lugar, é uma piedade interna, proveniente da alma. É a recta agendi, o reto agir. Todo o povo de Deus, de Adão e Eva até eu e você, somos piedosos neste sentido. Não podemos nos desviar de nosso recta agendi; Não podemos ganhá-lo; nós, sequer naturalmente o desejamos. 

Este recta agendi divino se torna nosso através do Evangelho pelo poder do espírito Santo. É a nossa justiça e salvação. Jamais devemos confundir esta piedade com um estado emocional, ou uma espécie de atitude de santidade, ou mesmo um sentimento de confiança. Esta piedade não reside em nossas experiências, nem em nossos processos cognitivos, seja de modo consciente, inconsciente, ou semi-consciente, embora também não negamos que a fé nos transforma em nosso coração. Este é o presente de Deus aos pecadores. Neste sentido, somos piedosos. 

Como a própria Declaração Sólida coloca: 

“Já que muitos se imaginam uma fé morta ou delusão destituída de arrependimento e boas obras, como se fé verdadeira e mau propósito de persistir e continuar em pecados pudessem coexistir simultaneamente no coração, o que é impossível. Ou, como se alguém pudesse ter e reter verdadeira fé, justiça e salvação, mesmo que seja e continue a ser árvore deteriorada e infrutífera, de onde nenhum bom fruto venha, Sim, ainda que persista em pecados contra a consciência, ou, propositadamente, retorne a tais pecados, o que é injusto e falso” 

Desta forma, uma atitude de desprezo pela piedade não pode ser considerada cristã. Vamos continuar no pecado para que a Graça abunde? De modo nenhum! (Rm 6.1). 

Outra forma de pensarmos em piedade é a piedade externa, ou seja, as boas obras. Ao que muitos já se adiantariam em dizer: Não creio em boas obras, isto é coisa de católico, é sinergia, eu já estou salvo pela fé, as boas obras não se aplicam a mim, etc...
em certa parte poderia até concordar, pois boas obras não podem operar a justiça que precisamos diante de um Deus que é três vezes Santo. Entretanto, as boas obras fluem naturalmente da fé. A piedade exterior flui da piedade interior. Em suma, nada mais que a sã doutrina bíblica segundo lemos: 

Porque pela graça sois salvos, por meio da fé; e isto não vem de vós, é dom de Deus. Não vem das obras, para que ninguém se glorie; Porque somos feitura sua, criados em Cristo Jesus para as boas obras, as quais Deus preparou para que andássemos nelas. Efésios 2.8-10 

Então retornamos ao ponto: porque muitos não gostam do termo “piedade”? 
Em parte, podemos enumerar os pecados contra os quais a Fórmula de Concórdia enumera no tocante à Doutrina das boas obras, mas também, em parte por confundirem piedade com pietismo. 


Então, o que é Pietismo? 

Pietismo é um movimento com raízes no século XVII em terras alemãs com consequências através dos séculos por todo o mundo. Não se relaciona com a vida cristã em piedade, embora os adeptos do pietismo queiram equiparar ambas. 

Na primeira metade do século XVII, exércitos cruzavam as terras alemãs durante a guerra dos trinta anos. Com o fim da guerra em 1648, a região contava seus mortos em meio à uma economia falida. Também pairavam dúvidas de que as diferenças religiosas que, em parte, motivaram a guerra poderiam ser resolvidas. No campo da ciência, correntes de pensamento agnóstico começaram a aumentar as dúvidas sobre a piedade cristã. 

Havia muito trabalho a ser feito e a ideia de que a fé sem obras é morta soou tentadora demais. Diversos movimentos petistas começaram a eclodir, alguns luteranos, outros reformados, mas a vertente mais influente foi a de Philipp Jakob Spener, teólogo luterano. Ele queria renovar a fé de uma “igreja moribunda”. Embora ele mesmo estivesse com boas intenções, Spener congregou os leigos à parte do serviço divino, entenda-se do culto, para estimular a piedade. Em parte, isto se mostrou benéfico ao criar os estudos bíblicos nos lares, como até hoje se preserva entre os cristãos, mas o problema foi mais epistemológico.
Epistemologia é o estudo de como conhecemos as coisas. Até mesmo as crianças são ávidas investigadoras epistemológicas quando perguntam “Mas como você sabe disso?” ou quando cantam “porque a Bíblia assim me diz”. 

A epistemologia de Spener era de que a experiência era a base de toda a certeza, então a visão de cristianismo e do próprio conceito de fé deixou de ter seu referencial no texto das Escrituras para se tornar na experiência individual do cristão. Logo, a certeza da salvação deixou de ser objetiva, fundada na Palavra e nos Sacramentos para ser algo que se deve sentir. A presença de Cristo migrou de ser a certeza nas palavras de Cristo, para manifestações emocionais. Não sem motivo, o momento dos cânticos foram tomando a proeminência como forma de “sentir Deus”, expressões como “quero te tocar, quero te abraçar”, “quero te ver” se tornaram motes nos cânticos nas igrejas, e perceba que nestes casos, a presença de Deus é a percepção dos sentidos, não mais a confiança nas palavras de Cristo que diz “Estarei convosco todos os dias até a consumação dos séculos”, como bem explica-nos W. Robert Godfrey: 

A música para alguns parece ter-se tornado um novo sacramento, transmitindo como intermediário a presença e experiência de Deus, estabelecendo um elo místico entre Deus e o adorador. Com os olhos fechados e as mãos no ar, os participantes repetem frases simples que se tornam mantras cristãos.  (In: Reforma Hoje, Cultura Cristã, p.159) 

Assim, a Piedade cristã, que fui de Deus para o homem, foi transformada num movimento do homem para Deus. 

Uma segunda geração de pietistas foi ainda mais longe, sob August Hermann Francke, pietistas da cidade de Halle passaram a afirmar que um Cristão verdadeiro deve ser capar de apontar o momento exato em sua vida que sua luta contra o pecado culminou em uma crise que, por fim, o levou à decisão de começar uma nova vida em Cristo. Somente após este momento a pessoa recebe o perdão e a fé (isto parece familiar?, Questões do tipo: quando você se converteu? Como foi a sua conversão? O que você sentiu quando o pastor fez o apelo?) para os mesmos pietistas, a vida cristã também deixou de ser de liberdade para o legalismo. Eles viam a lei divina como ainda mais rigorosa para com os cristãos que para com os demais. Entendiam os desejos naturais e prazeres como pecado, ainda que não estivessem discriminados na lei divina. (Quantos até hoje consideram o sexo como pecado, ou nos questionam sobre que formas de prazer são lícitas entre o casal). 

Concluindo:

A necessidade de uma experiência com Deus, uma decisão pessoal por Cristo, isto está espalhado pelo cristianismo moderno, na verdade, até mesmo dentro de nossas igrejas este pensamento tem desviado os olhares que deveriam estar fitos na cruz, e somente na cruz, para se voltarem para o interior do próprio homem. 

Em resumo, pietismo foi algo que acabou por colocar ênfase nas obras, confundiu lei e Evangelho, fazendo da decisão humana por aceitar Jesus, ao invés da teologia da cruz serem nossa certeza de salvação. Ele apela para nossa humanidade lapsária, tendo a aparência de se focar em Cristo (exigindo uma decisão por Cristo, ter simpatia por Cristo), enquanto, na verdade focou-se na experiência pessoal. Ela não pode nos salvar! 

Somente Deus é Deus e capaz de nos salvar, redimidos por Cristo, sejamos gratos a Deus por nos dar a sua justiça, a qual nós respondemos voluntária e conscientemente mortificando as obras da carne. Livremente, e somente assim abraçamos a verdadeira piedade, enquanto nos mantemos vigilantes para não cairmos no pietismo, sob pena de deixarmos a lei substituir a graça e substituir a cruz pelo enganoso coração humano diante de Deus. 

CRUX SOLA EST NOSTRA THEOLOGIA!

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