segunda-feira, 4 de janeiro de 2021

Os Versos Adicionais em Ester




Notas rápidas após a leitura

Apenas esclarecendo, devemos fazer uma distinção entre a parte canônica e a não-canônica no livro de Ester. Por incrível que pareça, já fomos acusados de renegar todo o livro. Acusações absurdas e nada honestas, diga-se de passagem. De fato, sempre aceitamos o Livro de Ester como parte inspirada por Deus nas Escrituras sagradas, só não podemos dizer o mesmo do apêndice do livro. 



1 – Foi escrito em Grego 

Jerônimo, grande tradutor da Bíblia, atesta que o apêndice não foi escrito em hebraico, sabemos que Josefo sugere que teria havido um texto hebraico do qual o grego teve origem, mas ninguém sabe, ninguém viu. 

Ok, concedemos então que possa ter havido um texto hebraico, sua autoridade é nula, já que não o temos mais para consulta, e por acaso, Deus não preservaria aquilo que ele teria inspirado os profetas, da mesma forma que preservou o restante do livro de Ester? 



2- Desaparecimento Estranho 

Na verdade o apêndice não é apenas na parte final do livro, mas contém porções no começo do livro, outras no meio, outras no final, mas qual a probabilidade de desaparecer apenas estas porções de texto na língua original, ao passo que o livro em si continuou perfeitamente preservado? 

Se tivéssemos trechos faltantes no texto, poderíamos até considerar a ideia do desaparecimento, mas o texto sem o apêndice é perfeitamente coeso. 

No mais, Josefo também não é a fonte para determinar o cânon, e podemos ler uma série de acusações contra a versão de Josefo em Lyra, Sixtus Senensis e Jerônimo. 



3- O Problema da Autoria 

O apêndice chega a nós pela mão de Lisímaco, Josefo, segundo alguns, foi quem incluiu o texto como parte genuína do Livro de Ester. Bom, sabemos que Josefo não era notável por uma autoridade profética, além de que não é provável que um mesmo escritor tenha feito um livro, e depois uma repetição do mesmo livro, contradizendo a história que acabara de narrar. E se foi escrito por um profeta, por que não segue o mesmo padrão da escrita do livro em si? 

Outro problema, o anexo menciona Ptolomeu e Cleópatra, dois que não viveram na mesma época que Assuero e Ester. Eles vieram depois dos eventos do Livro de Ester e depois de Esdras ter organizado o cânon, então não houve profeta naquela época. 



4- O Problema com o Livro de Ester 

No livro de Ester (2:16), o esquema dos eunucos contra Assuero foi no sétimo ano, mas o suplemento (11:2) afirma que foi no segundo, isto coloca o plano contra o rei antes mesmo do seu casamento, mas o livro canônico de Ester nos mostra que foi após. Além disto, o livro canônico de Ester nos mostra que a causa da ira de Hamã foi o fato de Mordecai não se ajoelhar perante ele (3:5), porém o anexo nos diz que foi a morte dos eunucos (12:6) (ok, este até da pra conciliar, mas mudar a narrativa nos levanta sérias dúvidas sobre a confiabilidade do apêndice). 

Seguindo, em 5:2, o rei olhou favoravelmente para Ester, mas no apêndice em 15:10, olhou com ira, alguns tentam explicar isto dizendo que no primeiro momento ele ficou bravo, mas depois teria se acalmado, mas isto também conflita com o livro canônico que informa que o rei a olhou favoravelmente assim que ela entrou, antes mesmo que houvesse uma explicação para uma entrada não autorizada. 

O livro canônico nos diz que os judeus seriam mortos no dia treze de Adar (3:13, 8:12, 9:1), o suplemento joga isto um dia para frente (13:6). 

No Canônico, Hamã é chamado de Agagita (outro nome para os Amalequitas), mas o apêndice diz que era um macedônio (16:10) 



5- Um Problema Ético 

Em 13:14, Mordecai teria se negado a se prostrar para não transferir a honra que cabe a Deus para um homem, mas o livro canônico nunca informou que Hamã queria ser adorado como um deus, e o próprio povo hebreu tem exemplos de prostrações diante de homens como uma forma de honra civil, esta é uma fala que soa estranha ao livro. 



6- Um Problema Histórico 

Não bastasse o fato de Hamã ser identificado como Macedônio, em 16:14 é dito que ele teria tentado transferir o domínio dos persas para os macedônios. O problema é que naquela época os Macedônios sequer eram uma ameaça ao poder da Pérsia e permaneceram inexpressivos até os dias de Felipe, o pai de Alexandre, o Grande, o que é um evento muito posterior aos eventos do livro canônico de Ester. Tão posterior, aliás, que Mordecai teria vivido quase 300 anos, já que 11:4 chega a afirmar que ele foi levado cativo à Babilônia por Nabucodonozor, sobrevivido aos 70 anos de servidão e 220 anos entre os reinados de Ciro e Artaxerxes. 

Poderíamos até apelar para o argumento da longevidade bíblica, se por um acaso, o apêndice já não estivesse cheio de problemas insolúveis na narrativa. 



7- Tira, Põe, Deixa Ficar 

Jerônimo considerou tirar o apêndice (do livro, claro!), Melito, Atanásio e Gregório de Nazianzo excluem o livro todo. Os dois primeiros seguiram a ideia do cânon judaico, Gregório, talvez (e bem talvez), tenha considerado apenas os capítulos adicionais como fora, chamando o livro de Ester (canônico) de “Esdras” na sua lista, como Isidoro chega a mencionar. 

Atanásio chega a mencionar que os judeus tinham canonizado o Livro de Ester, sem detalhes sobre o apêndice, Nicolau de Lyra tira o apêndice (do livro!), dizendo que o apêndice parece ter sido uma adição posterior cunhada por Josefo e outros escritores 

Dionísio, o Cartuxo, Thomas de Vio Cajetano, Sixtus Senensis consideraram o apêndice como apócrifo, Belarmino escreve contra o apêndice e remete sua opinião a Jerônimo. 

Sixtus Senensis chega a comentar que ele sabe da condenação de “anátema” imposta pelo Concílio de Trento, mas que ela não se deve aplicar ao que não pertence ao livro na sua integridade. 

Nenhuma novidade, Montano desconsidera o livro. 



Considerações finais 

Sobre o argumento de que o Texto foi preservado na Septuaginta, que era a bíblia dos Apóstolos e dos Santos Pais: é verdade que o nesta versão, o livro e o apêndice circulavam juntos, assim também como ninguém ignora o fato de que as escrituras hebraicas eram usadas e bem conhecidas, e, portanto, esta adição era conhecida de todos os Pais e de toda a Cristandade. A tese de que a Septuaginta um dia substituiu as escrituras hebraicas é tão absurda, que até hoje se usa o texto hebraico para resolver dúvidas no AT, não o grego. 

Sobre quem apela para a numeração diferente dos livros na bíblia grega, e que este seria o motivo de não lermos isto nas listas de livros dos antigos Pais, lembramos também que Melito, Hilário, Epifânio, Jerônimo e Rufino não numeravam o cânon de acordo com os gregos, mas seguiam a lista hebraica, e os hebreus não tem um livro chamado de “3ª Esdras”, logo, os dois livros mencionados não servem para o argumento da canonicidade do apêndice. 

Sobre alguns dos Santos Pais chamarem este livro de “Santo” – este argumento é realmente fraco, nós chamamos a Bíblia de Santa, e, no entanto, os Santos Apóstolos encheram suas cartas (até mesmo as canônicas) de citações de Menandro, Aratus, Epimenedes, e tantos outros, mas ninguém ousa canonizar filósofos pagãos. E o que dizer de Judas v.4, que cita o livro de Enoque, que é apócrifo e ninguém discute? Ainda assim, chamamos o conjunto de livros de “Bíblia Sagrada” Os Santos Pais também citaram o Pastor de Hermas, que ninguém chama de Canônico, O mesmo ocorre com 4ª Esdras, amplamente citado pelos Santos Pais, mas mantido fora do Cânon. Os decretos dos concílios também são chamados de “canônicos”, mas nem por isto são incluídos no conjunto de livros canônicos chamado “Bíblia Sagrada”, portanto, este testemunho histórico, não confere autoridade alguma. 

O testemunho de Orígenes: ok, é verdade que ele é um autor patrístico importante e ele atesta que o livro todo era lido, mas devemos lembrar que Orígenes sempre alinha seu pensamento aos judeus e ao que está no cânon dos judeus, e até Eusébio atesta isto 

Com todas essas observações, ainda é um bom livro de ser lido com seu apêndice. O que se deve ter por claro é que sobre esta parte acrescentada, ela é útil para instruir em comportamento, não para confirmar alguma doutrina, e por isto mesmo, a sua leitura acompanha a história de toda a cristandade no ocidente. 

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