quinta-feira, 30 de agosto de 2018

Dormi sem orar! E agora?



Confesso, ontem tive um dia extremamente exaustivo de trabalho, cheguei em casa já tarde da noite, o corpo dolorido de cansaço, a mente exausta, querendo apenas descanso. Abro a geladeira em busca de algo rápido para comer: tinha salsicha, condimentos e pensei: cachorro quente será rápido de fazer! Preparei a salsicha, não tinha pão! Estava cansado demais, então, vai só a salsicha mesmo! O quesito fome estava atendido! Tirei o uniforme do trabalho, tomei um banho, vesti a primeira coisa que me veio à mão da gaveta e cai na cama! Nem lembrei de colocar o celular para carregar. E a oração? Nem passou pela minha cabeça!

Por hábito, mantenho um pequeno altar doméstico, um recanto de oração, em meu quarto ao lado da porta. Assim sempre que me levanto, antes de sair já paro ali para fazer a minha devoção da manhã, à noite, o interruptor da luz fica bem ao lado, então novamente, já paro por ali, faço o sinal da cruz, digo o Credo e o Pai Nosso, uma breve oração e vou dormir. Aliás, mais que um hábito que trago da infância e que tenho alegria em fazê-lo, é uma orientação presente no nosso catecismo sob o tópico: Orações Diárias. 

Hum, então fiz pouco caso de Deus? Desrespeitei uma regra da igreja? Pequei? Se eu tivesse morrido durante a noite, eu nem pedi perdão pelos pecados cometidos durante o dia! Será que vou arder no marmo do inferno por causa disto? 

A bem da verdade, como cristão, posso andar com a minha consciência absolutamente tranquila. O Evangelho não consiste na minha capacidade de pensar em Jesus, mas em confiar que ele não deixa de pensar em mim! Uma triste fraqueza humana esta de nos cansarmos a tal ponto que nem conseguimos nos focar naquilo que é importante! Sim, no final, minha necessidade corporal falou mais alto que a necessidade da alma. Como somos fracos! Como um dia de muito trabalho já basta para nos deixar desgastados! Mas ao mesmo tempo, como temos um salvador forte! “sim, o protetor de Israel não dormirá, ele está sempre alerta!” Salmo 121.4. 

Da mesma forma que um pai não deixa de pensar em seu filho, creio em Deus, pai todo-poderoso! Eu sei que mesmo tendo sido vencido pelo desgaste do dia e ido para a cama sem pedir perdão e “lembrar” Deus de que eu sou filho dele, ainda assim posso apagar a luz e me deitar com tranquilidade que não vai aparecer o capiroto de debaixo da cama para puxar o meu pé!
Bom, mas não pequei ao fazer pouco caso de Deus? Na verdade, não. Deixar de buscá-lo é pecado, mas fazer de Deus algo tão inacessível que ele não possa atender minhas necessidades pessoais, a menos que eu formalmente suplique por isto, também é desprezar a Deus! Deus não é apenas desprezado por quem o ignora, mas a cada momento em que penso que ele possa me largar. Eu posso dormir tranquilamente se me esqueço de pedir esta tranquilidade. Minha paz não está no fato de ter pedido por isto, mas no fato de ele, como um pai, vigiar o sono do filho indefeso.

Ao longo de minha caminhada, já ouvi muitos pregadores dizendo que se não pedirmos, Deus não nos dá! Temos que pedir tudo o que for possível e imaginável, aí, talvez, alguns desses pedidos sejam atendidos. Certamente quem assim pensa, ou não se lembra de ter recebido um presente surpresa de seu próprio pai, ou não entende o que significa chamarmos Deus de “Pai nosso, que estás no céu”. 

Eu faço pouco caso de Deus quando sistematicamente deixo de buscar a Palavra e os sacramentos que nutrem e alimentam a minha fé. Ai sim, me torno aquele filho que pensa em largar o pai num asilo. 
Deus compreende a nossa fraqueza, e com efeito, o simples fato do sono nos fragilizar tanto é motivo de lamentarmos não apenas o que fazemos por pensamentos, palavras e ações, mas pela própria limitação de nossa natureza que nos impede de contemplar a Deus como deveríamos. Mas uma vez que em nós esta fé, divinamente gerada, constantemente alimentada, está segura, então podemos dormir em paz! 

Tendo sido, pois, justificados pela fé, temos paz com Deus, por nosso Senhor Jesus Cristo; Romanos 5.1

Para cada vez que um "pregador" diz: você não tem porque não pediu!  Sua vida vai mal porque voce faltou no ultimo dia da campanha de oração! Voce não recebe a bênção porque não plantou! Bateu o carro porque não orou antes de sair de casa! Teve pesadelo a noite porque não pediu para Deus te dar bons sonhos!....
Não façamos de Deus uma repartição pública! Descansemos na fé de que nosso Deus e nosso salvador é Pai e nós, seus filhos temos paz! 

sexta-feira, 24 de agosto de 2018

Diferenças entre Batistas e Luteranos – parte 2- A fé


Sobre a natureza da fé, batistas e luteranos compartilham da mesma visão, profundamente bíblica, por sinal de qual seja a sua natureza. Fé é uma certeza que aponta para o futuro e para a realidade das coisas que fogem aos nossos sentidos, como Hebreus 11 afirma. 
De igual modo, compartilhamos o mesmo pensar bíblico de que a esta certeza não deve vir apenas da razão humana, mas uma certeza sobrenatural, operada por Deus, ainda que, em momentos de fraqueza, esta certeza possa ser turbada, mas, assim como as águas, passada a agitação, torna-se cristalina novamente. 

O objeto de nossa fé também não é algo em que haja controvérsias: confiamos nas promessas de Deus que chegam a nós por sua palavra revelada. 
Basicamente, cremos no mesmo Deus triuno, e depositamos nossa confiança na mesma palavra da promessa. 
Entretanto, os desdobramentos sobre o que seja a fé em sua essência têm suas diferenças. 
Há essencialmente duas linhas na igreja batista, a fundamentalista e a reformada, cada uma com suas especificidades (há também a linha renovada, que foi uma reformulação em aspectos de culto da linha fundamentalista). 

Na linha fundamentalista, a exemplo das igrejas filiadas à Convenção Batista Brasileira, a definição de fé deriva de uma evolução histórica de conceitos que é condensada na própria declaração doutrinária desta convenção e adotada por suas igrejas, a qual podemos ler no ponto V, parágrafo 2, inciso 1: 

“(...) A fé é a confiança e aceitação de Jesus Cristo como Salvador e a total entrega da personalidade a ele por parte do pecador.” 

A declaração doutrinária, nesta linha pelo menos, não se dedicou extensivamente em pontuar a forma como esta fé deve se demonstrar de modo prático sob o mesmo ponto: a salvação, mas tece seus posicionamentos a respeito de questões seculares sob o termo “mordomia Cristã”. 

Aceitar estas posturas de mordomia equivale à citada passagem sobre a “total entrega da personalidade”, ou seja, ser bom mordomo das coisas do Senhor (tudo o que envolve os atos da vida) é um elemento que constitui a fé. Em outras palavras, fé é uma somatória de mente e mãos. 

Este pensamento, na verdade, não é algo criado sem propósito no seio denominacional, afinal, a linha reformada, muito mais antiga já compartilhava deste posicionamento. Na declaração de 1689, sobre as boas obras pode-se ler: 

“As boas obras, feitas em obediência aos mandamentos de Deus, são os frutos e a evidência de uma fé verdadeira e viva. Por meio delas os crentes demonstram a sua gratidão, fortalecem sua certeza de salvação (...)” 

Novamente encontramos aqui a referência de que a fé envolve uma parte sobrenatural: o crer, e uma parte natural: o agir, de modo que sempre se associa a fé e as obras num único conceito. 

O conceito doutrinário de um modo bem abrangente entre todos os batistas, portanto, não nos permite separarmos a crença em Deus do que fazemos. 

Então temos a seguinte situação: alguém passa por uma crise de fé. Começa a questionar sua própria salvação. O que fazer? Sendo bem instruída então, esta pessoa irá refletir sobre o seguinte ponto: Eu tenho fé? Em outras palavras: Eu creio de verdade em tudo o que a Bíblia diz? Bom, se a pessoa está em crise, esta resposta será um tanto incerta, as dúvidas aparecerão de imediato, então passa-se ao segundo ponto: Como eu posso saber se tenho fé? Então nos voltamos para o elemento natural da fé: o agir. Pelas obras posso mostrar a minha fé. Isto parece estar de acordo com Tiago 2:18, então, parece um caminho seguro. O que tenho feito da minha vida? Agora um cristão sincero deve realmente entrar em crise! Se tenho feito coisas boas, isto não é sinal de fé, pois até os ímpios são capazes de fazer coisas boas (Mt 7:9), se tenho feito coisas ruins, então minha fé não pode se manifestar nestas obras. 

Que angústia é essa! Tenho dúvidas sobre a minha salvação, então olho para as obras, que, confessionalmente são parte do quesito “fé”, e vejo que faço coisas más, e mesmo as coisas boas que faço não são suficientes para me diferenciar de um não-cristão! Caridade todo mundo pode fazer! Obedecer às leis, eu não preciso ser cristão para isso! Trabalhar na igreja, uma pessoa de qualquer religião não cristã também o faz com alegria em seus respectivos locais de culto, então não há nada, absolutamente nada que me garanta que tenho fé salvadora. 

Ah! Mas eu creio em Jesus, isto deve bastar! Na verdade, não! Até os demônios que Jesus expulsava criam nele (Mc 1:34). 

Então como posso saber se tenho fé salvadora? A verdade é que não há esta certeza salvo pelo testemunho interno do Espírito Santo. A fé salvadora não é uma fé reflexa, fruto apenas de uma atividade intelectual, portanto, a única resposta que podemos dar para uma pessoa vivendo a crise de sua fé é: Busque ler mais a Bíblia, intensifique suas orações que Deus vai trabalhar esta certeza em você. 

Por outro lado, a certeza e a boa consciência em Deus ocupam uma posição de extrema importância na espiritualidade luterana. A crise existencial e a certeza da fé são endereçadas com muita seriedade como centrais à vida de um cristão. 

Admitimos que o cristão pode às vezes, como fruto da limitação de nossa natureza, não estarmos cientes de nossa fé. O cristão não ser capaz de afirmá-la, ou de meditar sobre ela, de modo algum implica em sua ausência. Apreendemos a graça de Deus sobre nós mediante a fé, mesmo que não a possamos sentir. Mesmo diante da mais vil tentação, onde a auto-reprovação é forte, ali está a fé. Por ser dom sobrenatural de Deus, o coração humano não precisa sentir algo especial para saber que tem fé. Biblicamente falando, nossa salvação não é observada nas circunstâncias, mas na pessoa de Cristo e recebida pelo Evangelho, que é poder de Deus para salvação de todo aquele que crê. Quem duvida é o coração limitado e enganador que temos, a fé, por outro lado não depende de sinais, ou evidências. Desta forma, as crianças possuem fé verdadeira se estiverem em Cristo (Mt 18:6). Não podemos confundir a capacidade humana de organizar o pensamento e a fala com o dom de Deus pai, Fruto do Espírito e obra de Cristo, que é a nossa fé. 

Tomemos por exemplo uma pessoa com deficiência mental grave. Ela pode nunca ser capaz de expressar uma frase dizendo que crê em Jesus, ou de levantar sua mão, entendendo o que se passa, para receber uma oração do pastor, mas pode ter fé e ser salva! De igual modo uma pessoa em coma pode nunca ter tido a oportunidade de manifestar alguma evidência, e ainda assim, guardar sua fé! 

Portanto, no mesmo caso prático: o cristão passa por uma crise em sua fé, sendo bem instruído biblicamente ele saberá de imediato que a dúvida é um problema espiritual grave, afinal, incredulidade é algo muito sério (Jo 8.46; Mt 14.31), então, biblicamente se busca a solução para a falta de fé: a proclamação do Evangelho (Rm 5.20; 8.15-17)! Sim, falta de fé não se deve resolver olhando para as próprias obras, pois como vimos, embora necessárias na vida do cristão, elas não são suficientes para sairmos do dilema, não somos salvos por elas, mas pela Graça divina e pela Graça somente! Esta Graça está no Evangelho, então, toda crise de fé é resolvida, não buscando em nós mesmos algo de divino, mas buscando na Palavra, pelo Evangelho, e assim, dissipando as dúvidas. 

Serve ainda de consolo para quem tem dúvida, que a própria busca de se assegurar estar salvo em Cristo já demonstra a fé ativa na vida desta pessoa. Por isto que em nossos documentos confessionais podemos ler na Declaração Sólida II, 14:

“Esta preciosa passagem / Fp 2.13 / é de muito conforto para todos os cristãos piedosos que sentem e experimentam em seus corações uma centelhazinha e desejo da graça divina e de salvação eterna, por saberem que Deus acendeu em seus corações este princípio de verdadeira santidade e quer continuar fortalecendo-os em sua grande fraqueza e ajudando-os a perseverar na fé verdadeira até o fim.” 

Confessamos juntos, sim, que nossa fé é assegurada no testemunho interno do Espírito, mas não entendemos este testemunho como o “sentir” Deus. Somos compelidos pela Palavra a entendermos que o testemunho interno do Espírito Santo não é outra coisa senão a própria fé (1 Jo 5:10). Deus não vai soprar em nossos ouvidos “olha! Você tem fé!” Não! o Espírito Santo que habita em nós testifica de Cristo, isto já é a fé! 

Então, onde entram as obras nesta história? 

Para sermos estritamente bíblicos, não podemos nos fiar nas obras de nossas próprias mãos para dizermos se temos fé. Já vimos que nossa fé não é obra humana, nem se pode mostrar por ela. 

Então, como devemos entender Tiago 2:18 que diz: 
“Mas dirá alguém: Tu tens a fé, e eu tenho as obras; mostra-me a tua fé sem as tuas obras, e eu te mostrarei a minha fé pelas minhas obras.” 

Para isto cabe a pergunta: que obras? 
A confissão de fé batista de 1689 traz uma resposta no capítulo 16, ponto 6: 

“Se nossas obras são boas é porque procedem do Espírito. Contudo, à medida em que são desempenhadas por nós, essas obras vão sendo contaminadas, e mescladas a tanta fraqueza e imperfeição, que não podem suportar a severidade do julgamento divino. 
Todavia, desde que os crentes, como pessoas, são aceitos por meio de Cristo, as suas obras também são aceitas em Cristo, mas isto não significa que nesta vida tais obras sejam totalmente irreprováveis e irrepreensíveis aos olhos de Deus. Antes, significa que, vendo-as em seu Filho, Deus se agrada em aceitar e recompensar aquilo que é sincero, apesar de realizado com muitas fraquezas e imperfeições.” 

Logo, estamos aqui falando de todo o tipo de obra que possamos realizar, elas serão sempre imperfeitas, mas, para os que são de Deus, ele aceita, não as obras em si, mas a intenção na qual são feitas. Uma caridade feita por cristão é uma boa obra porque é feita na sinceridade do coração para Cristo, mesmo que no fundo haja alguma vaidade que suje o serviço. Em outras palavras, Deus é como aquele pai que recebe um presente de seu filho que ele mesmo fez nas aulas de educação artística. Cheio de falhas, pintura fora das bordas, mistura de cores sem muito critério, mas o pai recebe com orgulho porque seu filho fez o seu melhor para ele. 

Somos então confrontados com o que seria o testemunho externo dos Espírito Santo, como o amor a Deus e à sua palavra (Jo 8.47; 1Ts 1.3-6; 2Ts 2.13-15), o amor ao próximo (1Jo 3.14), o fruto do Espírito (Gl 5.22-24). Sabemos que o próprio amor é algo que flui de Deus em nós. Sabemos que o resumo de todos os mandamentos é este: o amor. 

Portanto, biblicamente, sem confundir lei e evangelho, não podemos confundir nossas obras deficientes com as boas obras preparadas por Deus para que andemos nelas. Acima de tudo, não podemos sustentar pelas Escrituras que nossas obras sejam um presente a Deus, mas antes um presente de Deus. 

Somente Deus é Deus e capaz de nos salvar, redimidos por Cristo, sejamos gratos a Deus por nos dar a sua justiça, a qual nós respondemos voluntária e conscientemente mortificando as obras da carne. Livremente, e somente assim abraçamos a verdadeira piedade cristã, a verdadeira boa obra. 

Ainda sobre esta natureza da fé como o testemunho interno do Espírito Santo, então esbarramos em um artigo que compõe a introdução da declaração de fé batista: 

“(...) somente essas pessoas eram por eles batizadas e não reconheciam como válido o batismo administrado na infância por qualquer grupo cristão, pois, para eles, crianças recém-nascidas não podiam ter consciência de pecado, regeneração, fé e salvação.” 

Diante de todo o exposto temos aqui um ponto que devemos discordar “crianças recém-nascidas não podiam ter consciência de pecado, regeneração, fé e salvação”. Evidente que não discordamos que crianças recém-nascidas não tem de fato a capacidade de autoexame. Mas nossa fé não é fruto de um exame de consciência! Em primeiro lugar, as crianças creem: Dos lábios das crianças e dos recém-nascidos firmaste o teu nome como fortaleza Salmos 8:2a, O próprio João Batista recebeu o testemunho do Espírito Santo (portanto a fé) ainda no ventre de sua mãe: e será cheio do Espírito Santo desde antes do seu nascimento. Lucas 1:15. 

Sejamos estritamente apegados ao texto bíblico: quem convence do pecado, da justiça e do juízo, quem testifica a fé salvadora, não são as minhas obras, não é a minha capacidade humana de avaliar minha condição, nem minha auto-consciência. O Espírito Santo testifica tanto no adulto quanto na criança a fé para a vida eterna, quer o cristão esteja consciente ou não de sua vida espiritual. 

Quando temos a fé como o crer e o agir desviamos os olhos da Palavra para nossas próprias mãos no momento de dúvida. Quando entendemos, porém, que o agir decorre da fé, sabemos que as obras que fazemos são boas, não porque sentimos que são agradáveis, mas porque a Palavra afirma que são boas! 
Tiremos nossas ações do centro das nossas preocupações, coloquemos o Evangelho, que as obras que realmente importam fluirão. 
Não busquemos fazer nossas obras com a ajuda de Deus, mas fazer as obras de Deus com Deus e em Deus para a maior glória de Deus! 

Não olho circunstâncias! 
Mas olho seu amor! 
Não me guio por vista! 
Alegre sou!

terça-feira, 21 de agosto de 2018

Diferenças entre Batistas e Luteranos - Espiritualidade


Antes de mais nada, esta não é uma provocação, mas algo que conheci de perto. 

Tendo crescido em um lar batista fundamentalista, devo dizer que sou profundamente grato a Deus por ter pais cristãos, que se importaram em me ensinar a sã doutrina em casa e me ensinarem sobre a importância da igreja e de Cristo na vida quotidiana. Foi como batista que tive a minha formação como pessoa e como batista que fui estudar teologia, uma graduação, dois mestrados e muitas experiências que jamais poderia deixar de lado. 

Entretanto, foi exatamente depois disto, dos estudos, dos mestrados onde as coisas começaram a decantar. Há uma fase complicada na vida de todo seminarista: muitas leituras, muitos conceitos, muita matéria e saímos de lá com a cabeça repleta de técnica, muita ortodoxia, pouca ortopraxia (a prática no viver diário de tudo o que se aprende). Esta era a fase de aprender a colocar tudo o que foi visto em termos de ações práticas. 

Como todo bom teólogo de tradição reformada, somos ensinados a avaliar tudo, todas as práticas e pensamentos dentro de nossas igrejas. Não as aceitar apenas pela conveniência, mas questionar tudo o que não fosse absolutamente bíblico. Foi então aí, e hoje entendo, por mão divina, que não me inspirei em seguir um outro mestrado ou pleitear um doutorado, mas apenas me recolher a meditar sobre tudo. 

Não houve um ponto particularmente especial que me trouxe até o luteranismo, mas por agora me detenho sobre este: A Espiritualidade. 

Por este termo entendemos todo o nosso viver perante todas as ações da vida e como isto se reflete em nosso relacionamento com o corpo de Cristo. 

O problema, na verdade, caminha em datas: em 1647, promulga-se os catecismos de Westminster, que em parte, contribuiriam para a formação das primeiras confissões de fé batistas. No catecismo maior de Westminster lê-se: 

1. Qual é o fim supremo e principal do homem? 

Resposta. O fim supremo e principal do homem e glorificar a Deus e gozá-lo para sempre. 


Não é uma má resposta, mas disto surgiu uma discussão relevante: Como o homem então pode glorificar a Deus? Esta era uma discussão relevante, pois dela dependia o entendimento da primeira questão do catecismo. Esta questão, em termos práticos foi resolvida de uma forma que mais tarde, em 1689 os batistas colocariam em seu texto sob o ponto 6:

Reconhecemos que há algumas circunstâncias, concernentes à adoração a Deus e ao governo da igreja, que são peculiares às sociedades e costumes humanos, e que devem ser ordenadas pela luz da natureza e pela prudência cristã, segundo as normas gerais da Palavra que sempre devem ser observadas. 

Eis aí o começo da problemática. O texto parece muito bom, faz até sentido se comparado ao ensino de 1 Cor. 11; entretanto, neste ponto encontra-se o problema. Para que o homem cumpra seu fim de glorificar a Deus, além dos ditames Bíblicos para agravar as consciências e nos deixar o que deve e o que não deve ser feito, também se admite como regra para o fim de que o homem possa glorificar, as listas de regras sobre a prudência. 

Evidente que prudência e moralidade são coisas desejáveis ao cristão, e quanto a isto não cabe questionar, mas o ponto onde esbarramos é que toda vez então que os comportamentos sociais fujam a estas listas de comportamentos prudentes e morais, o homem não é apenas descuidado ou de pouca reflexão, mas um perigo para si mesmo e para a igreja por não glorificar a Deus com seus atos, mesmo sobre coisas nas quais não há menção Bíblica. 

A espiritualidade passa a ser sinônimo de um viver prudente segundo os ditames sociais da igreja. Por prudência, neste caso, voltamos à regra: o cristão deve seguir regras específicas, não apenas o que está nas Escrituras, mas o que socialmente a igreja considerar como adequado. 

Desta forma, decide a igreja, por exemplo que o consumo de álcool em qualquer circunstância é pecado, mesmo que não haja nada sobre este ponto nas Escrituras a não ser prevenindo o abuso da substância. Entretanto, o chocolate, igualmente nocivo à saúde permanece liberado irrestritamente. Não se trata aqui de querer ou não consumir bebida alcóolica, mas de onde vem a autoridade para a comunidade dizer o que é a vontade de Deus se ela não está escrita. De forma semelhante, o Credo Apostólico, usado por toda a cristandade como uma declaração de fé é rejeitado, não pelas suas afirmações, mas pela “prudência cristã” em não se assemelhar aos que praticam orações repetitivas. A igreja assim decidira que não convém, isto vale como regra, quem a viola, peca! 

O que fazer então com este pecador? Dele espera-se a autodisciplina, mas se não houver, a comunidade espera que o seu pastor o faça! Note-se que aqui não estamos falando apenas do viver espiritual, mas do viver quotidiano sobre questões pessoais, como o gosto por esportes (há os que condenem esportes de contato como brechas para o diabo), vida em família, educação dos filhos, etc... 

Artes marciais, em algumas igrejas, é pecado (e sim, sempre fui muito condenado por isto, Deus abomina violência, logo eu pecava e ainda levava outros a pecarem), recitar o Credo como um resumo de sua fé em Deus, é pecado, não educar os filhos numa escola confessional, pecado! Um cristão que toque músicas não-cristãs, peca! (embora nada seja dito do professor que ensina não cristãos sem entrar no mérito da religião com seus respectivos alunos). Note-se que sobre estas coisas, não há nenhuma disposição bíblica. Estes regulamentos são da comunidade dos membros, qualquer novo membro, é convidado a aceitar as regras da casa. 

Este problema sobre as listas da prudência cristã (que por si só já se contrapõem à liberdade cristã à qual fomos chamados, e este princípio, sim, é bíblico) desemboca em outro problema:
O que fazer com o membro que peca? 

Como dito, espera-se a moralidade segundo os padrões das escrituras somados aos padrões comunitários, se o membro não o fizer, espera-se do pastor que tome uma atitude. Com isto, atribuímos aos pastores não apenas a responsabilidade sobre o crescimento espiritual segundo as Escrituras, mas transformamos qualquer questão social em algo espiritual. 

Surge então outra figura: o aconselhamento pastoral. Este é muito presente na vida de qualquer cristão nesta linha! A função do aconselhamento é ajudar o processo de crescimento espiritual, fazer sugestões positivas, colocar “disciplinas espirituais” de oração, jejuns, meditações diárias, cobrar frequência nos cultos, etc. 

Quanto a isto, então esbarramos em duas questões: em primeiro lugar, as comunidades locais passam a definir comportamentos tidos como aceitáveis ou não, muitas vezes até contraditórios de local para local, tendo com isto o mesmo peso de uma condenação divina expressa nas escrituras. Este ponto é difícil de digerir, até porque, creio na doutrina que chamamos SOLA SCRIPTURA, onde afirmamos tudo aquilo que está revelado nas Escrituras como verdadeiro, e, sobre o que não está escrito, também devemos nos calar. Não podemos criar pecados! 

Em segundo lugar, a função do pastor não é de ser um conselheiro para a vida pessoal, embora isto não seja um problema se ele for amigo, mas esta não a vocação ministerial das Escrituras. Não existem ministros chamados por Deus ao santo ministério para ditar qual profissão você pode aceitar! Aconselhamento é bom, mas a função do pastor está em Mateus 18: "Digo-lhes a verdade: Tudo o que vocês ligarem na terra terá sido ligado no céu, e tudo o que vocês desligarem na terra terá sido desligado no céu. Mateus 18.18
Sendo Bíblico na questão, o verso de destina aos apóstolos, e aos que exercem o ministério na igreja de Cristo: ligar e desligar, o ofício das chaves. 

No meio batista então temos o caso de um irmão em problemas, uma visita é agendada, seja na casa ou no gabinete pastoral o problema é exposto, o sujeito sai dali com bons conselhos para a vida pratica, uma lista de deveres: orar, jejuar, mais sessões de aconselhamento, enfim, estas possibilidades são várias. Se o problema for de uma seriedade maior, uma regra de disciplina é dada, uma punição que deverá durar até que a liderança ache que já foi tempo o suficiente. 

No meio luterano então, o irmão em problemas fala com o pastor no horário combinado, o problema é exposto, o pastor então anunciará algumas coisas: primeiro, a Lei. Ela é anunciada para que o homem tenha noção do seu pecado, arrependido, o segundo anúncio é feito: o Evangelho: Deus compreende a limitação humana e está disposto a perdoar, e terceiro: a Absolvição. Sim, por Cristo, com Cristo e em Cristo, o ministro cumpre seu dever bíblico de Mateus 18, Não há listas de prudência cristã a serem passadas, não há disciplinas de ficar um tempo afastado como punição, a preocupação maior é com a alma deste necessitado, e ele sai desta conversa ciente de estar perdoado por Deus. Os conselhos depois disso, são absolutamente secundários. 

Em um caso, temos um pecador arrependido que sai com conselhos para melhorar sua vida com Deus, no outro, temos um pecador arrependido que sai perdoado. Nisto temos outro ponto que nos apegamos: SOLA GRATIA! Somente pela graça de Deus é que somos salvos! Quando o perdão bíblico é anunciado, o pecador então recebe de modo bíblico a sua graça! 
Quando as regras sobre o que fazer são passadas, estas regras não terão o poder de apagar o pecado, mas com elas, espera-se que a pessoa se aproxime de Deus novamente, para que então, ela receba o perdão. 

Então já não é pela graça, mas pelas obras! Se eu preciso cumprir as regras extra bíblicas dadas no aconselhamento para que eu tenha o perdão dos pecados, então, estaria crendo que as obras são capazes de justificar um pecador, quando o pensamento bíblico é sempre: Pois vocês são salvos pela graça, por meio da fé, e isto não vem de vocês, é dom de Deus; não por obras, para que ninguém se glorie. Efésios 2.8,9 

Sobre o ponto da espiritualidade diária, então o que é bíblico? A comunidade pode estabelecer os pecados, ou apenas Deus em sua palavra? É mais bíblico que prevaleça a liberdade cristã e o pastor se ocupe de cuidar de minha alma, ou, que para não escandalizar os demais, o pastor seja uma autoridade até para minhas decisões pessoais de como viver e trabalhar?
Aconselhamento apenas, ou ter os pecados perdoados? O que é Bíblico afinal?

quarta-feira, 1 de agosto de 2018

O Pão nosso de cada dia dai-nos hoje



Podemos dizer que esta quarta petição do Pai Nosso é sem dúvidas uma das passagens mais sublimes do novo testamento. Para mim, ela simplesmente resume todas as nossas necessidades para esta vida e para a eternidade de modo sublime. 

Certamente que Deus tem providenciado o sustento diário para nós todos os dias, sejamos seus mais piedosos filhos ou o pior dos pecadores. Mas pedimos também por esta petição não apenas que nos seja dado, mas que possamos reconhecer isto como dádiva divina. Isto nos remete para o comissionamento dado por Cristo em sua ascensão aos céus “Ensinando-os a reconhecer todas as coisas que vos tenho mandado” (Mt 28.28-29). Nesta pequena frase aprendemos a reconhecer que nosso pão é acima de tudo, dádiva divina.

Mas seria isto somente o simples pão? De fato, não falamos apenas disto, mas de tudo o que entendemos ser pão, ou melhor definido nas palavras de Lutero: 

“O que significa o pão de cada dia? Tudo o que pertence ao sustento e às necessidades da vida, como por exemplo: comida, bebida, vestes, calçados, casa, lar, campos, gado, dinheiro, bens, cônjuge fiel, filhos piedosos, empregados fiéis, superiores piedosos e fiéis, bom governo, bom tempo, paz, saúde, disciplina, honra, leais amigos, bons vizinhos e coisas semelhantes.” 

Com toda razão colocamos por pão tudo o que é essencial à vida, não somente a uma mera sobrevivência, mas a uma vida alegre com amigos leais, bons vizinhos, bom governo, cônjuge fiel...
Neste momento inevitável pensar que Lutero se adiantou alguns séculos ao pensamento de John Piper, famoso teólogo que diz que devemos viver para a maior glória de Deus, e que o glorificamos também com nossa alegria. Louvar a Deus pelos agrados que temos é viver para a glória de Deus, e reconhecer isto como o pão nosso de cada dia, é entender a oração de Jesus com um sentido muito mais sublime. 

Basicamente estamos pedindo a Deus que nos ensine a reconhecer todas as coisas com ação de Graças a cada dia. E que preciosa lição é esta! Somos tão miseravelmente falhos que podemos tomar os mais grandiosos dons de Deus como algo comum e sem valor, simplesmente por termos todos os dias. 
O Povo que saiu do Egito caiu neste erro! Eles viam colunas de fogo todas as noites, caminhavam no deserto escaldante sempre à sombra de uma nuvem com roupas que nunca se desgastavam, comiam do pão que descia do céu em uma infinita variedade de receitas que deviam ter inventado todo este tempo, mas ainda assim... se acostumaram e passaram a reclamar ao invés de reconhecer o sustento vindo de Deus.
Somos ainda aqueles adolescentes mimados que mesmo recebendo uma mesada todo mês sem ter feito nada para merecer, ainda reclamamos que não temos o suficiente.
pedirmos a Deus “O pão nosso de cada dia dai-nos hoje” é uma lição de contentamento!.

Mas talvez possamos nos dobrar a outro sentido para este pão. Na verdade, é neste outro sentido que está a verdadeira maravilha do texto.

Ao nos lembrarmos que os Evangelhos de Marcos e Lucas, onde encontramos a oração do Pai Nosso transcrita, foram escritos, não em nossa língua, mas em grego, temos uma palavra incomum “Ton arton ton imeron epiousion dos imin simeron” Assim aparece o texto. O problema é esta palavra de difícil interpretação “epiousion”. Trata-se do que linguisticamente chamamos de “hápax legomenon”, ou seja, um termo que não se repete no mesmo contexto, ou no caso, esta palavra não aparece em nenhum outro lugar de qualquer texto escrito em grego antigo. Isto é importante, pois usar uma palavra tão incomum já aponta para o fato de que estes homens estavam tentando traduzir em palavras algo que superava tudo o que eles poderiam explicar. 

Sabemos que esta palavra tão incomum ocupa na frase a posição de um adjetivo, ou seja, é uma qualidade para “arton” (pão). Entretanto, este adjetivo é antecedido por um artigo, “ton”, então, se comparta como um substantivo, um nome.
Com esta dificuldade, esta palavra foi simplesmente traduzida como o pão diário, ou o pão de cada dia. Entretanto, em nenhum outro lugar esta palavra foi usada, em todos os demais textos do Novo Testamento, sempre que algo era dito nesta frequência, a palavra diária usa outro termo “himeran”, termo bem comum no grego. 

Então, se já havia uma palavra comum para “pão diário” porque precisaram usar uma palavra nunca antes usada e que nunca mais foi encontrada?
Podemos então voltar até as primeiras gerações de cristãos, que certamente teriam maiores condições de entender esta linguagem, e encontramos São Jerônimo no ano 382 da era cristã com a difícil missão de traduzir esta passagem para o Latim. Jerônimo, atualizando o latim antigo para uma versão mais condizente com sua época, buscou no grego o significado original, transpassando-o para o latim corrente em sua época. Vendo este dilema ele traduziu então de duas formas esta palavra, em Mateus 6.11, Jerônimo fez uma análise morfológica, buscando a raiz da palavra e assim a traduziu como “supersubstantialem”, apontando para uma substância sobrenatural, e no texto de Lucas, a mesma palavra foi traduzido por “quotidiamum”, simplesmente dizendo ser um pão diário.

Sem dúvidas há muitas formas de entendermos o “pão nosso de cada dia”, mas esta é uma delas: “Epi-Ousion”, uma super substância, um pão que não é nada parecido com os demais. O mais próximo em nossa língua seria “o pão nosso sobrenatural dá-nos hoje” De fato, os Santos Pais entendiam que esta petição era na verdade uma prece eucarística:

“O sacramento dos fiéis, necessário agora, não, porém, para a felicidade deste tempo, mas para alcançarmos a felicidade eterna.” (Santo Agostinho) 

Vale lembrar, este termo é de difícil tradução e o entendimento como sedo apenas uma alusão ao pão quotidiano é perfeitamente cabível. Tanto que assim foi mantido na tradução de Jerônimo, e mesmo nas missas celebradas em latim do antigo rito, ainda o texto usado é o de Lucas onde a palavra utilizada é esta “quotidianum”. 

Podemos sim ver “epiousion” como uma recordação do Maná no deserto, como vemos em Exodo 16.4, o pão suficiente para o dia, como de fato podemos ler em algumas versões. Ainda assim, encontramos suporte para entendermos este pedido pelo “pão sobrenatural” em Agostinho, Cirilo de Jerusalém, Cipriano de Cartago e São João cassiano (embora contraditado por Orígenes). 

Tomado neste sentido, o pão sobrenatural nos aponta para o Pão da Vida, o próprio Cristo, “dá-nos hoje” neste caso, aponta para o Dia do Senhor, a celebração da instauração do reino de Deus, este grande dia que sua igreja aqui na terra aguarda e que provamos um pouco quando tomamos parte na mesa do Senhor com os irmãos na fé a cada comunhão na Santa Ceia. Faz então completo sentido primeiro pedirmos “venha o teu reino”, e depois continuarmos, pedindo o pão sobrenatural de Deus.
Assim desde as primeiras gerações de cristãos entenderam, o pão nosso de cada dia é o pão necessário para a existência, este é o pão da comunhão, este é Cristo! O fato dos autores dos Evangelhos precisarem criar uma nova palavra para explicar isto nos aponta para o fato de estarem tentando explicar alguma coisa realmente nova, que nunca antes alguém tinha presenciado para que esta palavra já existisse.

Inicialmente Lutero também na sua tradução para o alemão tinha mantido a palavra “supersubstancial” conforme os textos apontam, em 1528 alterou a palavra para “täglich”, ou “diário” como encontramos até hoje. O motivo não foi ter discordado de se tratar de uma petição eucarística, mas na verdade por conta de uma corrente em sua época que via nesta petição a menção apenas do pão usando assim este texto para justificar a divisão do sacramento, servindo-se apenas o pão. A explicação de que não se deveria proceder assim foi inclusa até mesmo na Confissão de Augsburgo. 

Temos então um pedido escatológico: pedimos a antecipação do mundo porvir! 
Não seria uma contradição Jesus nos ensinar a pedir pão todos os dias e logo depois, em Mateus 6.31 dizer para não nos preocuparmos com mantimento que Deus cuidaria de nossas necessidades? 
Muitas são as interpretações desta passagem difícil, e com isso, as possibilidades de se traduzir o texto. Mas como esta passagem nos leva a pensar, com um simples pedido dizemos:

O mantimento nosso de cada dia nos dai hoje
As alegrias nossas de cada dia nos dai hoje
Nos dê o suficiente para nosso dia
Nos dê Cristo todos os dias!