sábado, 29 de dezembro de 2018

C.S.Lewis - Se Deus é bom, então porque sofremos?



Bom, este texto não é um texto de Lewis, evidentemente, mas não pude deixar de sintetizar a visão deste grande teólogo sobre o motivo de sofrermos se Deus é absolutamente bom.
Apesar de sua obra mais conhecida ser o conto infanto-juvenil " As crônicas de Nárnia", este comentário é uma breve síntese de seu pensamento segundo outra obra sua - "O Problema do sofrimento" de 1940.




Começamos com um jogo que todos conhecem: um futebol entre amigos. Neste jogo, evidentemente haverá regras. Mas, dada à informalidade, podemos modificar algumas coisas. 

Um jogador faz o outro tropeçar, deveria haver uma penalidade, mas neste caso, anulamos esta regra, afinal, são todo amigos. Um pedido de desculpas e o jogo segue. Desta vez, a bola já estava na área do gol e acaba saindo do campo. Não há problemas, simplesmente pegamos a bola no meio do mato e o jogo segue sem interrupções. É perfeitamente possível que se jogue desta forma, entretanto chegamos a um ponto de descontentamento. O tropeção, a perda da bola para fora do campo geram o descontentamento por parte do outro time que poderia lograr alguma vantagem, ainda que este possa ser compensado numa eventual situação de jogo semelhante. 

Então modificamos as regras deste jogo: cada movimento irregular simplesmente é sinalizado, a bola volta ao ponto em que deveria estar e o jogo continua como se a falta nunca tivesse acontecido. Então geramos outro problema: todas as escolhas erradas são retrocedidas e forçamos a atitude certa a acontecer, neste ponto chegamos não a tornar as regras mais flexíveis para os amigos aproveitarem mais o esporte, mas as tornamos tão rígidas que eliminam a possibilidade do erro, e com isto, de um jogo de competição, já que toda vitória depende também da derrota do time contrário, que errou em sua estratégia. Isto resulta também em descontentamento. 

Então partimos ao terceiro modelo: as regras são definidas antes do jogo começar, sejam as oficiais, sejam regras complementares como sobre quem deve ir buscar a bola que cair no vizinho. Estas regras são fixas e não mudarão ao longo do jogo. Temos novamente pessoas descontentes com o jogo porque as regras não deram o favorecimento que queriam. 

Podemos entender, portanto, que não importa o arranjo de regras, elas sempre terminam em descontentamento, o senso de injustiça, o sofrimento. 
No modelo da criação divina, vemos este tipo usado por último no jogo de futebol: as regras são fixas e definidas antes da grande partida cósmica começar. 

Neste sentido, Deus cria o homem, não para que discutisse as regras com ele, mas para que, sob estas regras, ele vivesse. Então, como pode o ser humano viver sem sofrer, se o descontentamento ocorre em qualquer arranjo de regras? 
Deus fez o homem dotado de vontade, a ela chamamos livre-arbítrio. Alguns argumentarão dizendo que o arbítrio em si mesmo não pode ser livre, mas a vontade é que pode, não me deterei aqui neste ponto, simplesmente usando o nome historicamente reconhecido de “livre-arbítrio” como usado em toda a história da igreja. 

O ponto relevante é: não há descontentamento, ou mesmo dor alguma se a vontade de Deus coincide exatamente com a vontade humana. Em outros termos, se Deus quer que eu faça uma viagem para a praia, e isto corresponte exatamente ao que eu desejo no momento, não há nisto qualquer descontentamento ou dor. 

A dor começa justamente quando o homem se questiona se está fazendo a sua vontade, ou a de Deus. Quando a vontade humana não coincide com a vontade divina, começa o drama humano da morte e do sofrimento. 


Como era no Éden
Com isto vemos que o sofrimento é inevitável. O homem decaído tem uma sombra em si mesmo do que seja o bem, suas leis e seus desejos morais são de bem, mas como uma imagem borrada, não podem definir exatamente o que seja este bem que se busca. Um exemplo fácil de se atingir é quando se ouve de uma mãe “não quero que meu filho sofra, eu só quero o bem para ele”. Mas pergunte à mesma mãe o que é o bem, e verá que esta busca é algo que nem mesmo ela sabe onde está, apesar de ter em si mesma uma sombra do que seja este bem e sob a qual busca criar seu filho. Portanto, não é arriscado dizer: esta criança sofrerá! De modo semelhante, a mãe, que deseja o bem sem o identificar nitidamente também sofre. Esta dor da alma não pode ser aplacada sem que o desejo humano seja exatamente coincidente com a vontade divina. Quando a vontade da alma está então toda alinhada com a lei pela qual o universo é criado, então não há dor. O desejo humano se torna exatamente que tudo seja aquilo que já é, e portanto, há contentamento pleno. Não há senso de injustiça. 

Vemos nisto que a alegria do Éden não era um estado diferente por causa de Deus ou sua lei, mas por causa do homem que desejava conforme o que Deus também desejava, e nisto, não via falta de nada. Uma repetição deste estado veremos novamente no fim dos tempos, quando a promessa do evangelho é de um estado de contentamento e justiça sem fim. Neste dia, enfim, estaremos vivendo ainda que sob leis fixas da obra divina, sem rastro de sofrimento ou dor. Dizer que estas coisas já serão passadas equivale dizer que a dicotomia entre a vontade humana e a divina, finalmente estarão superadas. O homem desejará em perfeito acordo com seu criador, pela rendição de sua vontade. 


Como é hoje:
Este pensamento nos leva a refletir sobre o atual momento de nossa encarnação. Sabedores que somos do bem existente em Deus, como o bem absoluto e de que nossas vontades estão em descompasso. Sabemos que somos capazes de desejar boas coisas, mas ao mesmo tempo, nossa inclinação é má e por isto sofremos. O sofrimento é o fruto do apego às nossas vontades em desacordo com a vontade de Deus. Então, como deve-se buscar viver? 

Neste ponto, podemos fazer a distinção entre o sofrimento necessário e o sofrimento voluntário. 


O Sofrimento Necessário
O sofrimento necessário não é outro senão o que nos torna dignos do amor.  Para este caso, pensemos no exemplo de uma pessoa que toma para si um filhote de cachorro. Este é travesso, sujas suas patas na terra, corre para dentro da casa, sobe na mesa e derruba a comida sobre as cadeiras estofadas e morde os sapatos lustrados. Então, a famíla percebe a necessidade de educar este filhote. Um cão mais maduro sabe que é amado pela sua família, e dela recebe todo o amor, mas ao jovem filhote, as duras repreensões são alvo de seu sofrimento. Na verdade, este sofrimento imposto e necessário não significa o desamor, mas justamente a tentativa de tornar o rebelde filhote mais digno do amor que lhe é dispensado. Assim também o pai que repreende o filho, o marido que honestamente palpita sobre a aparência de sua esposa. O amor verdadeiro busca o aperfeiçoamento daquele que é amado, de modo a fazer do amado alguem cada vez mais digno. Neste ponto, assim somos nas mãos amorosas de Deus, pequenos rebeldes que precisam de duras repreensões para que sejamos cada vez mais dignos de um amor sem medida. Então a causa do sofrimento é o desacordo entre nossa vontade rebelde e o amor de Deus que quer nos fazer dignos. 


A Mortificação:
O sofrimento voluntário é a mais elevada resposta a este amor. Se temos consciência de que Deus é bom, e, portanto sua vontade é o padrão da bondade e perfeição, e igualmente temos consciência de que nossa vontade perdeu este foco que uma vez já teve no Éden, então naturalmente deve-se concluir que o melhor para que o homem cumpra seu fim último de glorificar a Deus seja o de conformar-se à vontade de Deus. 

Perceba-se que, se Deus deseja que eu escreva este artigo, e eu assim também desejo, então não posso dizer estar conformando a minha vontade à vontade de Deus, não há um segundo caminho o qual seja tentado. Não posso dizer estar subjulgando meu eu. Mas, se a vontade de Deus for uma e a minha vontade for outra, então posso conscientemente abrir mão da realização da minha vontade em reconhecimento da perfeita vontade de Deus. Certamente que isto não vem sem sofrimento. Se quando um bebê batia os pés e gritava para que a minha vontade fosse ouvida e hoje não faço mais isto, é sinal de que até certo ponto o cuidado divino através de meus pais e mestres cuidou de esmagar meu eu, mas ao mesmo tempo, também cresceu a astúcia de cobrir a repressão em uma área com a indulgência em outra. Daí a necessidade de morrer diariamente: por mais que julguemos ter esmagado o "eu" rebelde, vamos sempre descobri-lo vivo. O fato de este processo não poder apresentar-se sem sofrimento é testemunhado pela palavra "mortificação". 

Mortificar a vontade humana não é um conceito exclusivamente cristão, antes disto, está gravado na lei moral que rege a todos os homens. O Asceta indiano mortifica sua carne numa cama de pregos, em Platão, vemos que o exercício da vida é, na verdade a prática da morte (Fédon), os deuses do paganismo morrem para nutrir a vida, em certas vertentes, a auto-flagelação é meio de purificação espiritual. É um evangelho eterno revelado aos homens onde quer que estes tenham buscado: é o próprio nervo da redenção, que a sabedoria disseca em qualquer tempo e em todos os lugares; o conhecimento do qual não se pode escapar. A peculiaridade da fé cristã não é ensinar esta doutrina mas interpretá-la, de várias maneiras, a fim de torná-la tolerável. 

O sacrifício de Cristo é imitado por todos os seus fiéis em maior ou menor grau. Desde os mártires que experimentaram as mais crueis formas de morte até a auto submissão da vontade no viver diário de um simples homem em um lugar remoto. O diálogo da santificação portanto não é sobre deleites das biografias dos santos, mas sobre o sofrer humano unido a Cristo que confia nas promessas evangélicas de perdão, vida e salvação. 

Não se discutirá, portanto no cristianismo bíblico o viver pleno, a vida próspera, mas o sofrer voluntário de se esmagar o “eu” rebelde diariamente. Esta penitência constante acompanha a vida do cristão por todos os dias de sua vida, de modo que o santo, não é aquele que não se suja na lama da vontade humana decaída, mas aquele que vive o lavar regenerador todos os dias enquanto esmaga sua vontade sob o amoroso olhar de Cristo.

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