terça-feira, 20 de março de 2018

O QUE FOI A DIETA DE AUGSBURG?

O QUE FOI A DIETA DE AUGSBURG?

É bem interessante ver o filme sobre a vida de Lutero e como ele, ao menos no filme, comemorava a audiência em Augsburg. Para quem não conhece a história, na cidade alemã de Augsburg foi feita uma assembleia, chamada de Dieta de Augsburg para se expor ao imperador alemão Carlos V um resumo dos pontos sobre o que creem os que aderiram à reforma.
Martinho Lutero não poderia estar presente, ele foi impedido por conta de um decreto em uma assembleia anterior chamada de Dieta de Worms. 
Em Worms, a questão tratada foi especificamente sobre Lutero, agora em Augsburg, a questão era sobre seus seguidores. 
O clima não era de comemoração, muito pelo contrário, Lutero mesmo disse que em Augsburgo, não tratariam com homens, mas com as próprias portas do inferno. 
Lutero sabia que aquela assembleia poderia firmar a reforma, ou sepultá-la num banho de sangue.

O documento preparado para ser apresentado em Augsburgo, chamado de Confissão de Augsburgo é até hoje o mais importante documento luterano. A Confissão foi escrita por Filipe Melanchton e expõe os pontos centrais da fé em tom cortês e demonstrando que nada se ensinava contrário às escrituras. O texto desta confissão pode ser lido na íntegra traduzido para o português por um link no topo da página. 

O que muito se tem ouvido é que a reforma luterana só ocorreu por ter sido politicamente conveniente. O que aprendemos em Augsburg é justamente o oposto. A política era o elemento menos importante ali. Convicções políticas, por mais que existam não sobreviveriam às pressões que os príncipes eleitores suportaram. 

O tom desta Dieta foi marcado logo no início das reuniões, onde o Irmão do imperador, Fernando, toma a palavra contra um dos príncipes que haviam aderido à reforma e assinado a Confissão de Augsburgo: Filipe, o Landgrave de Hesse. Os termos foram duros: Ou ele se sujeitaria, abrindo mão da Confissão que havia assinado, ou sua infidelidade custaria sua vida. Até então, as sessões haviam apenas começado e os artigos da Confissão ainda nem mesmo haviam sido apresentados. Não se tratava de uma discussão diplomática, mas de uma imposição. 

A resposta de Filipe de Hasse foi igualmente à altura. Sua resposta se tornou tão famosa quanto o discurso de Lutero em Worms anos atrás. “A permitir que me seja tirada a Palavra do Senhor, a negar o meu Deus, eu preferiria, ajoelhando-me diante de Sua Majestade, que me decepassem a cabeça!”. Dito isto, se prostrou diante de Carlos V com seu pescoço à mostra, esperando a condenação que desde o início já parecia provável. Os demais príncipes se prostraram de igual modo, dispostos a morrer ali mesmo, sem recuar. 

Os primeiros momentos já foram tensos, os príncipes alemães sabiam que corriam perigo, Melanchton escreve para Lutero nesta ocasião, afirmando estarem em grande perigo e, não fosse a moderação do Imperador, já estariam mortos. 
Mesmo diante de protestos e da oposição veemente do enviado de Roma, a Confissão pode ser lida, na ocasião, tendo a aprovação do próprio bispo de Augsburg, um dos representantes dos católicos, que chegou a afirmar ser verdadeiro tudo o que foi posto. Isto derruba a ideia de que se propunha uma separação da Igreja por parte dos Luteranos. Em todo o texto da Confissão de Augsburgo, pode-se ver que nada foi escrito para que se rompa com a unidade da fé, mas para que erros colocados ao longo dos séculos fossem revistos para se retornar à fé católica sadia. O Arcebispo de Salisburgo também reconheceu que a comunhão em ambas as espécies era algo desejável, e uma prática que não deveria ser deixada, embora rejeitasse a ideia de que um simples “monge” pudesse ser um reformador (referindo-se a Lutero). 

Os representantes do papado eram, por outro lado mais enérgicos, não debateriam, neste momento exigiam do rei que fossem imediatamente mortos. Este conselho apenas não foi levado a diante pelo improvável defensor que se levantou, o bispo de Brandemburgo, o mesmo que havia começado tudo com a questão da venda as indulgências e que levou Lutero anos antes a pregar suas teses nas portas de Wittenberg. 

Para os representantes católicos, não haveria diálogo, Melanchton e os nove príncipes deveriam ser postos à morte. E esta era uma ameaça real! 
A opiniões favoráveis e mais moderadas do Arcebispo de Brandemburgo eram respondidas pelo arcebispo de Salisburgo e pelos eleitores católicos com chamamentos à execução de todos eles. Os teólogos espanhóis orientavam que deveriam ser postos à morte se falassem contra a Igreja. 

Este era o cenário em Augsburg naqueles dias: A Dieta não era uma discussão diplomática, mas um ultimato para sufocar a reforma. Mesmo mostrando uma confissão que não afrontava a igreja católica, mas apenas ressaltava pontos a serem revistos, e por motivos justos, ainda que membros do alto escalão da Igreja tenham entendido que nada havia ali que afrontasse a Igreja, mas eram justas afirmações, o sangue deles era pedido. O desejo era de morte, e que isto se desse de modo a destruir a reforma completamente. Politicamente falando, não se poderia estar em posição pior que aqueles príncipes em Augsburg, sem o favor do soberano, podendo ser postos à morte a qualquer instante, na verdade, era o que bem queria a maioria ali. Fosse este um movimento de conveniência política, certamente esta estratégia foi a pior. 

Filipe Melanchton entendeu o que se seguiria, prevendo a morte de todos os nove príncipes e guerra no território do Sacro império, tentou negociar os termos de Augsburg para o mínimo possível. Quem o impediu de ir a diante foi justamente um dos príncipes, Felipe de Hasse, que chegou a escrever a Zwínglio: 

Melanchton está indo de costas, como um caranguejo (...) quando começamos a ceder, sempre cedemos mais. Declarai, por conseguinte, aos meus aliados que não aprovo essas pérfidas conciliações. Se somos cristãos, o que devemos procurar é não a nossa própria vantagem, mas o conforto de tantas consciências cansadas e oprimidas, para as quais não haverá salvação se afastarmos a Palavra de Deus. Esses bispos não são os verdadeiros, pois não se expressam segundo as Santas Escrituras. Se os reconheceis como tal, o que se seguiria? Eliminariam os nossos ministros, reduziriam o Evangelho ao silêncio, restabeleceriam os antigos abusos, e a situação final ficaria pior do que a primeira. Se os papistas permitirem a livre pregação do Evangelho não alterado, cheguemos a um acordo com eles, porquanto a verdade será mais poderosa e desarraigará tudo quanto restar. Contudo, se não a permitirem, nada de acordos! Não é esta a ocasião de ceder, mas de permanecer firme, mesmo até a morte. Frustrai esses temíveis ajustes de Melanchton; dizei aos delegados das cidades, de minha parte, que sejam homens, e não mulheres. Nada temamos: Deus está conosco! (D’AUBIGNÉ, Merle J. H. História da Reforma do décimo-sexto século) 
Aqui vemos um teólogo que pensava na conveniência política de livrar os príncipes, e um príncipe que o enfrentava por sua postura fraca. Eles não queriam conveniência, estavam sim dispostos a perder família, bens, poder, a própria vida, se fosse preciso. 

Em meio a tão complicada situação em Augsburg, onde a vida dos príncipes eleitores e de Melanchton estavam em perigo iminente, um mensageiro do Papa Clemente VII chega com instruções papais para que não houvesse debate, Carlos V deveria imediatamente introduzir o exército e terminar a reforma ao fio da espada. 

Os dias da Dieta se passavam de modo extremamente tenso e a ameaça de morte cada vez soava mais alto até que a resposta católica chega. 
O documento é conhecido como “Confutação Romana” e, como era de se esperar, receberem a cópia do documento que levou semanas para ser escrito estava condicionado à submissão, sem direito de resposta. Como a proposta não foi aceita, toda a Confutação Romana foi lida em voz alta, sem que os luteranos tivessem acesso ao documento escrito e prazo de apenas um dia para a resposta. 

A resposta luterana foi elaborada num extenso documento que permanece até hoje pareado com a Confissão, esta era a Apologia da Confissão. Um documento extenso onde cada um dos pontos onde houveram oposições foi extensivamente tratado. 

Tal documento não foi sequer recebido para leitura, ao invés disto e de se manter a discussão no campo teológico, onde se poderia provar, ou não, a validade das afirmações, a estratégia foi de atacar diretamente aos protestantes (que foram chamados assim desde seu protesto na Dieta de Spira). 

A George, o Margrave de Brandemburg, e signatário da Confissão, seus dois primos eleitores e seus dois irmãos, também margraves o ameaçaram com a ira do imperador. Como este não cedeu, passaram a João, duque da saxônia e o primeiro a ter assinado a Confissão, foi avisado de que perderia todos os territórios e seria punido com desterro. Seus assistentes se prontificaram a defende-lo com armas, o que foi rejeitado pelo próprio duque, que dizia que proteger a Palavra de Deus não se daria senão pela mão do próprio Deus. 

Ao perceberem o quanto os eleitores estavam dispostos a perder, entenderam que ameaçar apenas com palavras não bastaria. 
O discurso de Campeggio, o enviado de Roma sugeria a Carlos V que usasse de sua espada contra eles, fossem confiscadas suas propriedades e a nomeação de inquisidores para seguir o rastro dos que aderiram à reforma, de modo semelhante à inquisição espanhola. (lembrando que o imperador Carlos também governava a Espanha, entretanto, lá não dependia dos príncipes eleitores pois governava de modo absoluto, tudo isto acontecia lá com sua total aprovação) quanto à Universidade de Wittenberg, que fosse interditada, que os livros fossem queimados e que os monges fossem reconduzidos da universidade para os monastérios 

A situação do Imperador também não o permitia cometer deslizes, uma guerra interna fragilizaria o império e os turcos estavam forçando as fronteiras, por outro lado, a França era um poder sempre ameaçador e anos antes já havia feito uma aliança com o papado contra o Sacro Império (não havia “Alemanha” na época, a região era assim chamada de Sacro Império Romano Germânico). O Luteranismo em menos de uma década já era uma força em si mesmo. 

Sobre o clima que pairava, não se falava outra coisa senão em guerra 

Martin Bucer chegava a dizer que “haverá uma chacina dos santos tal que os massacres de Diocleciano dificilmente se lhe equipararão”, e os enviados de Nuremberg diziam que “os nossos adversários estão sedentos do nosso sangue”. 
Uma atitude então é por fim tomada, as portas da cidade de Augsburg foram fechadas, os soldados aprontaram suas posições, a guarda da cidade foi substituída pelo exército do imperador e os eleitores foram proibidos de circular. Augsburgo se transformava na prisão de todos os líderes da Reforma. Os alojamentos dos príncipes eram invadidos todas as noites e barulho era feito nos corredores a fim de que não dormissem 

Mesmo diante de tais pressões, nenhum dos signatários da Confissão estava disposto a ceder, o que espantava a corte e enfurecia ainda mais o imperador. 
João Frederico, Duque da Saxônia e príncipe eleitor consegue abandonar a cidade em segredo, isto frustrava os planos do Imperador, já que um príncipe poderia facilmente reunir o exército de nove territórios simplesmente testemunhando que seus respectivos governantes haviam sido feitos prisioneiros. 
Havia então apenas uma saída agora: o rei Carlos ordena que os protestantes se unissem aos católicos para fazer guerra contra os anabatistas e os reformados zwinglianos (da Reforma Protestantes de Genebra) 

Com uma declaração de Guerra, o que Carlos e toda a corte esperavam era que as cidades protestantes retornassem ao catolicismo temendo um massacre. Não foi o que houve. Os representantes das cidades negaram apoio à guerra contra os turcos enquanto não houvesse paz no território interno. 

Assim, a Dieta de Augsburgo chegou ao seu impasse maior. Ameaçar a vida dos príncipes eleitores não surtia efeito, ameaçar devastar o território com a guerra também não. A Dieta de Augsburgo foi encerrada sem um acordo, salvo um pacto de não haver guerra entre os príncipes pelo prazo de um ano. 

Assim termina a Dieta que firmou o luteranismo para sempre. Não fosse por ela, a principal declaração de fé, a Confissão de Augsburgo e o seu documento explicativo, a Apologia da Confissão não teriam sido escritos. 
Augsburg também foi o local onde se tornou claro o interesse dos príncipes, não na política, mas a qualquer custo manter o anúncio do Evangelho. É verdade que haviam motivações políticas para que a reforma acontecesse, mas estas motivações jamais levaria a tamanha demonstração de coragem e fé, aliás, muito mais dos próprios eleitores que do teólogo Filipe Melanchton que tentou negociar os termos. 
Eles sabiam que suas vidas estavam em perigo, mas estavam dispostos a pagar qualquer preço, mas não a recuar de suas convicções. 



Livros que tratam deste tema e são uma boa fonte de consultas: 

D’AUBIGNÉ, Merle J. H. História da Reforma do décimo-sexto século: Vol. V. São Paulo: Casa Editora Presbiteriana, 1962. 

LINDBERG, Carter. Reformas na Europa. São Leopoldo: Sinodal, 2001, p. 285.


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